terça-feira, 12 de setembro de 2017

"Eis o mistério da fé"

Recentemente publicamos uma série de três textos divulgados pela Rádio Vaticano em seu quadro “Memória Histórica” sobre a Sagrada Liturgia. Hoje publicamos mais quatro textos, que apresentam a aclamação memorial: “Eis o mistério da fé” com sua resposta: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus”, novidade trazida pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

1. Concílio Vaticano II e a reforma litúrgica: Eis o mistério da fé
16/08/2017
“O sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja. Julga, por isso, dever também interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia”, reza o n. 1 da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, promulgada pelo Papa Paulo VI em 4 de dezembro de 1963.
Neste nosso espaço vamos trazer 4 pontos sobre essa renovação do entendimento da liturgia. “Eis o mistério da fé” será o primeiro deles a ser tratado pelo Padre Gerson Schmidt:
As mudanças na liturgia introduzidas pelo Concilio Vaticano II são muito significativas. Mas ainda não foram bem assimiladas por todos nós. Os liturgistas brasileiros Ione Buyst e Dom Manoel João Francisco, no livro “Mistério Celebrado: Memória e compromisso II”, apontam alguns grandes traços teológicos de mudança implícitos na renovação da liturgia eucarística, a partir da aclamação pós-conciliar, depois da consagração, que diz: “Eis o mistério de nossa fé! Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus”. Essa aclamação está baseada na primeira Carta aos Coríntios: 1Cor 11,26.
Nela se indica o sentido central da ação eucarística: o Mistério Pascal. Segundo esses liturgistas “a Eucaristia é uma ação ritual, simbólico-sacramental, ação de Cristo Ressuscitado na força do Espírito Santo, atualização memorial de sua entrega e de sua glorificação, fazendo de nós participantes de seu mistério Pascal e de sua comunhão com o Pai, na expectativa da plena realização do Reino de Deus. É uma aclamação profética que aponta o rumo por onde o mundo encontrará a paz, a felicidade, a unidade. Implica nosso compromisso na construção de uma sociedade sem fome, sem guerras, sem discriminações, buscando caminhos de solidariedade, respeito e compreensão mútua, partilha dos bens” (p. 35).
Vamos apontando essa renovação do entendimento da liturgia, em nossa memória histórica do Concílio, em 4 pontos: 1. Eis o mistério da Fé; 2. Anunciamos, Senhor a vossa morte; 3. E proclamamos a vossa ressurreição; 4. Vinde, Senhor, Jesus.
Hoje apontamos o primeiro ponto: “Eis o mistério de nossa fé”. Essa é a aclamação, em tom de anúncio profético, do sacerdote depois de consagrar o pão em corpo e o vinho em sangue. A palavra mistério aqui é traduzida por sacramento, por realizar o que significa. Não se trata de um mistério qualquer oculto de Deus, desde muito tempo e agora revelado. Não é um revelação de um segredo divino, outrora oculto. Mas o Mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo, atualizado para nós na liturgia que está sendo celebrada.
Os liturgistas Ione Buyst e Dom Manoel João Francisco, atual bispo de Cornélio Procópio, dizem que na época do Concílio foi uma grande novidade usar o termo “Mistério Pascal” como conceito fundamental para a Eucaristia. Muitos padres conciliares estranharam isso, pois até então somente a paixão e morte de Jesus eram consideradas “memórias” da graça da salvação. O padre que proclama, em tom eloquente, “Eis o mistério da fé” não proclama simplesmente o mistério da transubstanciação, mas a Mistério Pascal acontecendo entre nós, mistério renovado no hoje de cada altar eucarístico”.

2. Concílio Vaticano II e a reforma litúrgica: Anunciamos Senhor a vossa morte!
23/08/2017
As mudanças na liturgia introduzidas pelo Concilio Vaticano II são muito significativas. Visando um melhor entendimento delas, temos trazidos neste nosso espaço algumas reflexões sobre esta renovação. No programa passado, falamos sobre o significado da expressão “Eis o mistério da fé”. Na edição de hoje, o Padre Gerson Schmidt, que tem nos acompanhado neste percurso, nos traz a reflexão de um segundo ponto: a resposta da assembleia após a consagração “Anunciamos Senhor a vossa morte”:
Os liturgistas brasileiros Ione Buyst e Dom Manoel João Francisco, apontam alguns grandes traços teológicos de mudança implícitos na renovação da Liturgia Eucarística, a partir da aclamação pós-conciliar, proclamada depois da consagração: “Eis o mistério de nossa fé! Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus”. Essa aclamação está baseada na primeira Carta aos Coríntios: 1Cor 11,26. Na oportunidade anterior falamos da aclamação do sacerdote: Eis o mistério de nossa fé. Apontamos que se refere ao mistério pascal atualizado em cada Eucaristia.
Hoje começamos a refletir a resposta da assembleia litúrgica: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte”. Nós não podemos dissociar o Senhor ressuscitado e glorioso do servo sofredor. Não há glorificação, sem passar pelo caminho da crucificação. Cristo entrou na morte, livremente, para destruir nossa morte. Ele mesmo diz em João 10,18: “Ninguém a tira (a vida) de mim, mas eu a dou livremente; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la. Este mandamento recebi de meu Pai”.
O documento de renovação litúrgica Sacrosanctum Concilium, no número 05, afirma essa kênosis, esse esvaziamento de Cristo na morte. Diz o documento conciliar que Cristo completou a obra da redenção humana. No mistério pascal, Cristo “morrendo, destruiu a nossa morte e, ressurgindo, deu-nos a vida” (frase tirada do prefácio da Páscoa do Missal Romano). Pois, do lado de Cristo agonizante sobre a cruz nasceu “o admirável sacramento de toda a Igreja” (Santo Agostinho). Como do lado aberto de Adão que dorme, nasce Eva, é do lado aberto de Cristo, na cruz, que dormita em sua morte, que nasce a Igreja, nova Eva, sem ruga e sem mancha.
Ione Buyst e Dom Manoel João Francisco dizem que “o caminho da superação não passa pela eliminação do sofrimento ou pela alienação do sofrimento, mas passa por dentro dele, na esperança de vencer”. O amor sempre supõe um sacrifício, uma morte. Na liturgia, por excelência, nós anunciamos fundamentalmente a morte de Cristo, o mistério de sua entrega total na cruz por amor à humanidade.
A Constituição Sacrosanctum Concilium, no número 06, também afirma que a Igreja pelos séculos, desde a Igreja primitiva, jamais deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal: lendo “tudo quanto nas Escrituras a ele se referia” (Lc 24,27), celebrando a Eucaristia na qual “se representa a vitória e o triunfo de sua morte” e, ao mesmo tempo, dando graças “a Deus pelo seu dom inefável” (2Cor 9,15) em Cristo Jesus, “para louvor de sua glória” (Ef 1,12) por virtude do Espírito Santo. O Concílio, nesse número 06, diz que a Eucaristia, que além de Eucharistós - Ação de Graças, é celebração na qual se “representa a vitória e o triunfo de sua morte”. Aqui entendemos que esse representa não apenas uma representação qualquer, como num teatro. Mas é uma memória viva, atualizada, onde anunciamos a morte e a vitória de Cristo sobre ela, até que Ele venha no Reino definitivo".

3. Reforma litúrgica: "Proclamamos a vossa ressurreição"
30/08/2017
Na última quinta-feira o Papa Francisco ao encontrar os participantes do 68ª Semana Nacional Litúrgica italiana, repassou o arco de 70 anos desde o início da reforma litúrgica - iniciada com o Papa Pio X e com o Movimento Litúrgico, e que atingiu seu ápice no Concílio Vaticano II com o Documento Sacrosanctum Concilium -  ocasião em que reiterou com veemência que a reforma litúrgica é irreversível. Em breve dedicaremos alguns programas a este importante discurso do Santo Padre.
Mas no programa de hoje, damos prosseguimento à reflexão do Padre Gerson Schmidt sobre este novo entendimento da liturgia também eucarística, que ele dividiu em quatro pontos: “Eis o mistério da fé” e “Anunciamos Senhor a vossa morte” - já abordados nas duas edições anteriores - “E proclamamos a vossa ressurreição”, tema do programa de hoje e “Vinde Senhor Jesus”, que será o tema da próxima semana:
Estamos aqui refletindo a renovação da liturgia eucarística, a partir da aclamação pós-conciliar que foi introduzida na liturgia depois da consagração: “Eis o mistério de nossa fé! Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus”.
Essa é uma aclamação que indica o sentido central da ação eucarística: o Mistério Pascal. Já comentamos os traços da aclamação sacerdotal “Eis o mistério da fé”. Também refletimos no programa passado, a primeira frase da resposta do povo: Anunciamos, Senhor, a vossa morte... Hoje queremos nos deter na continuação dessa resposta: E proclamamos a vossa ressurreição!
Quando o padre, em tom forte, diz: eis o mistério da fé... O povo irrompe numa resposta uníssona: “Anunciamos, Senhor a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição!” Proclamação a vitória de Cristo sobre a morte. É como um grito litúrgico e existencial: a morte foi vencida pela vida. “Ó morte, onde está tua vitória? O morte, onde está teu aguilhão?” (cf. 1Cor 15,54-55). Somos associados à morte-ressurreição de Cristo.
Os liturgistas brasileiros Ione Buyst e Dom Manoel João Francisco, comentam esses traços teológicos de mudança implícitos na renovação da liturgia eucarística e comentam assim essa segunda parte da aclamação do povo após a consagração – e proclamamos vossa ressurreição: “Aquilo que aconteceu uma vez por todas na última ceia e na morte de Jesus na cruz acontece hoje para nós, em mistério, toda vez que realizamos, como corpo eclesial, a ação eucarística. Nele, todas as nossas ‘mortes’ são chamadas à transformação pascal”. De fato, na liturgia, Cristo quer irromper em nossas mortes para nos fazer ressuscitar com Ele para uma vida nova.
É muito interessante essa aclamação, de todo da assembleia litúrgica - e proclamamos a vossa ressurreição! - após o anúncio do presbítero na celebração eucarística “Eis o Mistério da fé”.  O verbo utilizado pela liturgia é proclamar – é ser arauto – ser anunciador dessa grande notícia. Não falamos “e bendizemos pela vossa ressurreição” ou “agradecemos vossa ressurreição”.
Está implícito nessa resposta da assembleia um dever do kerigma, do anúncio do Cristo Ressuscitado dos mortos: proclamamos a vossa ressurreição! Não podemos pedir em seguida que Ele volte sem a nossa pronta atitude de levar essa notícia a todos os povos, proclamando a Ressurreição a toda a criatura, como alude a interrogativa dos anjos na ascensão de Cristo: “Por que estais aí a olhar para o céu?”. É como um imperativo - O Senhor não virá antes do que o Evangelho seja proclamado, em cima dos telhados, a toda a gente".

4. Renovação litúrgica: Vinde Senhor Jesus!
06/09/2017
Temos refletido neste nosso espaço sobre a renovação da liturgia eucarística a partir da aclamação pós-conciliar introduzida na liturgia depois da consagração. Nos programas anteriores, comentamos as frases: “Eis o mistério de nossa fé!”, “Anunciamos, Senhor, a vossa morte!”, e “Proclamamos a vossa ressurreição!”. No programa de hoje, o sacerdote incardinado na Arquidiocese de Porto Alegre, Padre Gerson Schmidt - que tem nos acompanhado neste percurso - nos traz uma reflexão sobre o quarto e último ponto: “Vinde Senhor Jesus!”:
“Estamos aqui refletindo a renovação da liturgia eucarística, a partir da aclamação pós-conciliar que foi introduzida na liturgia depois da consagração: “Eis o mistério de nossa fé! Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus”. Comentamos cada frase dessa aclamação, faltando ainda a última frase: Vinde, Senhor Jesus.
Há um termo que é utilizado na Escritura para esse apelo litúrgico que fazemos: Maranatha (do original em hebraico מרנא תא, maranâ tâ, "vem, Senhor!"). O termo é a composição de duas palavras, que transliteradas dão origem à palavra Maranatha e que significa "O Senhor vem!" ou ainda "Nosso Senhor vem!".
Maranatha é uma expressão aramaica que ocorre duas vezes na Bíblia. Primeiramente empregada pelo apóstolo Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios capítulo 16 versículo 22: “Se alguém não ama ao Senhor, seja anátema. Maranatha”. A palavra parece ter sido usada como uma "senha" entre os cristãos da igreja primitiva, e provavelmente foi neste sentido usada pelo Apóstolo Paulo.
No desfecho do livro do Apocalipse, a mesma expressão é utilizada como uma oração ou pedido, na língua grega, e traduzida por: “Vem, Senhor”. Maranatha, - Vem, Senhor, Jesus – aqui é incluído na liturgia nessa aclamação que estamos comentando aqui nesse espaço. É nesse sentido de súplica, de um pedido ardente, que é utilizado na liturgia – manifestando a presença do Senhor na Ceia e suplicando o seu retorno na parusia.
Na época do Antigo Testamento, o Rei viajava para fazer justiça. Um arauto (Mensageiro do Rei) ia adiante dele tocando a trombeta e advertindo o povo: “O Rei está vindo, Maranatha!” Aqueles que esperavam por justiça desejavam a vinda do Rei. O povo da terra a ser visitada preparava-se para sua chegada limpava e reparava os caminhos, demonstrando assim obediência e desejo de agradar ao Rei.
A palavra Maranatha era também utilizada nos cultos, na Igreja primitiva, para invocar a presença do Senhor na Ceia. Era usada ainda para expressar o desejo de seu retorno para estabelecer seu Reino. Equivale ao pedido feito pela Igreja na oração dominical: “Venha o teu Reino”. Com relação à volta do Senhor Jesus, “Maranatha” tinha um duplo sentido: era uma oração - “Vem, Senhor” - e uma expressão de fé - “O Senhor está voltando!”. A frase pode ter sido usado como saudação entre os primeiros cristãos, e é possivelmente desta maneira que ele foi usado pelo apóstolo Paulo.
Apontamos já na última oportunidade que na frase anterior “proclamamos a vossa ressurreição” está implícito, nessa resposta da assembleia, um dever do kerigma, do anúncio do Cristo Ressuscitado dos mortos. Não podemos pedir, em seguida, que Ele volte sem a nossa pronta atitude de levar essa notícia a todos os povos, proclamando a Ressurreição a toda a criatura. É como um imperativo - O Senhor não virá antes do que o Evangelho seja proclamado, a toda a criatura.
A Eucaristia é sacramento do Reino o qual ainda não se realizou plenamente e que ultrapassa toda imaginação e expectativa. Não é um reino simplesmente humano, social e político. Mas é um reino universal, transcendental, não pura obra humana, embora perpasse por ela. Deus em tudo e em todos (1Cor 15,28). O Reino que pedimos que aconteça não é deste mundo. Por isso, em cada liturgia, antecipamos a eucaristia celeste, que é celebrada no céu. Aqui, em figuras, já prefiguramos a ação de graças escatológica que será celebrada eternamente no Reino vindouro. Como diz a Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 08: “Na liturgia da terra nós participamos, saboreando-a já, da liturgia celeste, que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual nos encaminhamos como peregrinos” (SC, 08)”



Referência:
Ione Buyst e Manoel João Francisco. Mistério Celebrado: Memória e compromisso II. Paulinas: SP, 2004, pp. 35s.

2 comentários:

  1. Boa noite! Temos uma dúvida em minha comunidade quanto a essa parte da missa. Nos ajoelhamos no tocar da sineta, no momento da invocação do Espírito Santo sobre as oferendas. Durante a consagração, permanecemos de joelhos. Quando levantar: no momento em que o ministro diz “Eis o mistério da fé”, ou quando já tivermos proclamado a resposta (Anunciamos, Senhor…)?

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    1. A Instrução Geral do Missal Romano não especifica o momento exato em que os fiéis devem se levantar após a consagração.
      A maioria dos liturgistas entende que a aclamação memorial (Anunciamos, Senhor...) é uma "profissão de fé" e, portanto, deve ser dita em pé, mesma postura na qual recitamos o Creio.
      Assim, a invocação do sacerdote ("Mistério da fé") serviria também como um convite a levantar-se e professar essa fé.

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