quarta-feira, 28 de março de 2012

A Via Sacra: História, teologia, celebração

“O Cristo por nós padeceu, deixou-nos o exemplo a seguir. Sigamos, portanto, seus passos!” (1Pd 2,21).

Uma das práticas de piedade mais queridas pelos fiéis, sobretudo no Ocidente, é a Via Sacra (Caminho Sagrado), também conhecida como Via Crucis (Caminho da Cruz) ou Via Dolorosa (Caminho das Dores).

Através da Via Sacra, acompanhamos nosso Senhor Jesus Cristo nos últimos passos de sua vida terrena, isto é, no mistério da sua Paixão e Morte. Assim, fazemos eco à exortação do próprio Senhor: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me” (Lc 9,23; cf. Mt 16,24; Mc 8,34).

Cristo carregando a Cruz (El Greco)

A seguir traçaremos brevemente um histórico dessa devoção, celebrada sobretudo nas sextas-feiras do Tempo da Quaresma e na Semana Santa, mas que pode ser recitada em qualquer dia ou tempo litúrgico.

1. “Pré-história” da Via Sacra: As peregrinações a Jerusalém e os Montes Sacros

A origem da devoção da Via Sacra encontra-se, naturalmente, em Jerusalém: já no século IV a peregrina Etéria (ou Egéria) testemunha em seu Itinerarium as diversas procissões aos lugares associados aos mistérios da “Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus”.

As peregrinações à Terra Santa ganhariam um novo impulso no século XII, com a fundação do Reino de Jerusalém no contexto das Cruzadas. Nesse mesmo período a devoção à Paixão do Senhor é reforçada pela pregação de vários santos - como São Bernardo de Claraval (†1153), São Francisco de Assis (†1226) e São Boaventura (†1274) - contra a heresia dos cátaros, os quais negavam o valor salvífico da Morte de Cristo.

No ano de 1342, com a Bula Gratias Agimus, o Papa Clemente VI (†1352) instituiu a Custódia Franciscana da Terra Santa, confiando o cuidado dos “lugares santos” à Ordem dos Frades Menores. Assim, seriam os franciscanos os grandes promotores da devoção da Via Sacra, marcando a chamada “Via Dolorosa” com os primeiros oratórios em honra dos eventos da Paixão: o encontro de Jesus com Simão de Cirene, com as mulheres...

Placa indicando a "Via Dolorosa" em Jerusalém

Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre os santuários da Terra Santa clicando aqui.

Os peregrinos que iam à Terra Santa, ao retornar aos seus países de origem, desejavam recordar os lugares visitados, sobretudo depois que as peregrinações se tornaram mais difíceis com o fim do Reino cristão de Jerusalém (1291) e com a queda de Constantinopla (1453).

Assim, surgiram na Europa os chamados “Montes Sacros”, conjuntos de pequenas capelas, geralmente edificadas em uma colina, que reproduziam os vários lugares da Paixão em Jerusalém: o Cenáculo, o Getsêmani, o Calvário, o sepulcro...

No Brasil, o exemplo mais notório de “Monte Sacro” são as seis “Capelas dos Passos da Paixão” que integram o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (MG), com as esculturas realizadas pelo célebre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (†1814) e seus discípulos.

Cristo carregando a Cruz - Aleijadinho
(Capelas da Paixão - Santuário de Bom Jesus de Matosinhos)

No Brasil e em Portugal, com efeito, além da Via Sacra, a devoção à Paixão é reforçada com o culto ao “Senhor Bom Jesus”, isto é, Cristo contemplado em diversos momentos da sua Paixão: flagelado,  coroado de espinhos (Ecce Homo), a caminho do Calvário (Senhor dos Passos), Crucificado...

Apesar de essas devoções serem legítimas, é preciso evitar um “fracionamento excessivo” do mistério. Em contrapartida, convém destacar “o conjunto todo do evento da Paixão, segundo a tradição bíblica e patrística” (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 129), recordando ainda que “a Morte e a Ressurreição de Cristo são inseparáveis na narrativa evangélica e no projeto salvífico de Deus” (ibid., n. 128).

2. A consolidação da forma tradicional da Via Sacra

A partir do século XV desenvolvem-se em torno dos “Montes Sacros” citados acima três devoções que confluiriam na Via Sacra como nós a conhecemos:

- a devoção às “quedas” de Jesus sob o peso da cruz, fixadas em sete (número que simboliza a completude na Sagrada Escritura), populares sobretudo na Alemanha;

- a devoção aos “caminhos dolorosos” que Jesus percorreu durante a Paixão: do Getsêmani à casa de Anás; desta à casa de Caifás; daí ao palácio de Pilatos... Em alguns lugares surgiu o costume de visitar sete igrejas na Sexta-feira Santa em honra desses “caminhos” do Senhor [1];

- a devoção às “estações” de Cristo, isto é, os momentos em que Jesus parou durante o caminho do Calvário, encontrando-se com os homens e mulheres que participavam da sua Paixão: a Escritura cita Simão de Cirene e as mulheres de Jerusalém; a partir dessas últimas a tradição acrescentaria a Virgem Maria e a Verônica.

A primeira queda de Jesus sob a Cruz
(Capela da III Estação - Via Dolorosa, Jerusalém)

Entre os séculos XV e XVII surgem os primeiros esquemas de Via Sacra, que variavam muito em relação ao número de estações, que iam de sete a mais de 30! Alguns esquemas começavam com a condenação de Jesus à morte por Pilatos; outros retrocediam até a agonia no Getsêmani; outros ainda ao anúncio da traição de Judas durante a Última Ceia...

A Via Sacra em sua forma atual, com quatorze estações (7+7), se consolida a partir do início do século XVII, primeiramente entre os franciscanos da Espanha e logo passando à Itália, onde a devoção encontraria o seu grande “apóstolo”: São Leonardo de Porto Maurício (†1751).

São Leonardo teria percorrido diversas regiões italianas promovendo a devoção da Via Sacra. O Papa Bento XIV (†1758) o convidou então a conduzir a Via Sacra no Coliseu durante o Jubileu de 1750.

São Leonardo de Porto Maurício, "apóstolo" da Via Sacra

Já em 1686 o Papa Inocêncio XI (†1689) havia autorizado os franciscanos a edificar nas igrejas confiadas à Ordem o conjunto de imagens com as estações da Via Sacra (ou ao menos 14 cruzes recordando as estações), concedendo-lhes especiais indulgências, confirmadas por Inocêncio XII (†1700) em 1694 e por Bento XIII (†1730) em 1726. Este último estendeu a indulgência associada à oração da Via Sacra a todos os fiéis.

No ano de 1731, o Papa Clemente XII (†1740) permitiu que a Via Sacra fosse edificada em todas as igrejas, desde que fosse abençoada por um sacerdote franciscano. A partir de então se fixa o “esquema tradicional” das 14 estações:
1. Jesus é condenado à morte
2. Jesus carrega a cruz
3. Jesus cai pela primeira vez
4. Jesus encontra-se com sua Mãe
5. Jesus é ajudado por Simão de Cirene
6. Jesus tem o rosto enxugado por Verônica
7. Jesus cai pela segunda vez
8. Jesus consola as mulheres de Jerusalém
9. Jesus cai pela terceira vez
10. Jesus é despido de suas vestes
11. Jesus é pregado na cruz
12. Jesus morre na cruz
13. Jesus é descido da cruz
14. Jesus é sepultado

Em 1862, a pedido dos Bispos da Inglaterra, o Papa Pio IX (†1878) permitiu que a bênção das estações da Via Sacra, até então reservada aos franciscanos, como vimos acima, pudesse ser realizada por qualquer sacerdote (presbítero ou Bispo).

Esta é a normativa presente no Ritual de Bênçãos promulgado após o Concílio Vaticano II [2], embora atualmente se recomende erigir as estações da Via Sacra fora da igreja, de modo a não confundir o “devocional” e o “litúrgico”, valorizando assim a “dimensão eclesiológica” das paredes do templo, com as dozes cruzes em alusão aos Apóstolos e à Jerusalém celeste (cf. Ap 21) [3].

Franciscanos conduzem a Via Sacra no Coliseu
(Francisco Javier Amérigo)

3. Formas alternativas da Via Sacra

Apesar da consolidação das 14 estações a partir do século XVIII, em alguns lugares se costuma acrescentar uma 15ª estação em honra da Ressurreição do Senhor, sobretudo quando a Via Sacra é rezada fora do Tempo da Quaresma e da Semana Santa.

Além disso, vale a pena destacar alguns formulários “alternativos” da Via Sacra a serem valorizados ao lado do “esquema tradicional” [sobre os quais há postagens próprias aqui em nosso blog]:

- a Via Sacra Bíblica, com 14 estações tomadas exclusivamente dos relatos dos Evangelhos. Este esquema foi proposto pela primeira vez durante o Jubileu de 1975, sendo retomado em várias ocasiões durante a Via Sacra presidida pelo Papa no Coliseu;

- a Via Lucis (Caminho da Luz), uma Via Sacra pascal, com 14 estações recordando os mistérios desde a Ressurreição do Senhor até a vinda do Espírito Santo em Pentecostes, fazendo um excelente paralelo com a Via Crucis e completando a meditação do Mistério Pascal de Cristo;

- relacionados à Via Sacra encontram-se ainda a Via Matris (Caminho da Mãe), na qual se propõe a meditação das sete dores de Maria; e a Via Sanguinis (Caminho do Sangue), que recorda as sete efusões do sangue de Jesus para nossa salvação.

Desde 1964, por iniciativa de São Paulo VI (†1978), os Papas presidem anualmente a Via Sacra junto ao Coliseu na noite da Sexta-feira Santa. A partir de 1993, por sua vez, os Papas presidem a Via Sacra também nas edições internacionais da Jornada Mundial da Juventude.

Uma família conduz a cruz durante a Via Sacra no Coliseu

Desde 1985, através da iniciativa de São João Paulo II (†2005), o Papa convida um fiel ou grupo de fiéis a preparar as meditações que acompanham a Via Sacra da Sexta-feira Santa no Coliseu. Assim, temos no site da Santa Sé um vasto “repertório” de textos que podem ser utilizados em nossas comunidades.

4. Como rezar a Via Sacra

Como o próprio nome indica, a Via Sacra é um caminho. Portanto, reza-se essa devoção caminhando, ou melhor, peregrinando ao longo das 14 estações.

Quando a Via Sacra é rezada dentro das igrejas, porém, é comum que os fiéis permaneçam em seus lugares e o caminho processional seja realizado apenas por quem preside o rito e pelos ministros ou fiéis com a cruz e as velas. Nesse caso os fiéis se voltam sempre para a cruz, que vai percorrendo as estações.

À frente dos fiéis, com efeito, caminha sempre a cruz, neste caso comumente sem o Cristo, uma vez que este é representado nas estações da Via Sacra. A cruz pode ser ladeada por duas velas acesas (ou duas tochas, quando se reza ao ar livre). Ao longo do caminho os ministros ou fiéis que carregam a cruz e as velas podem revezar-se, favorecendo a participação de todos.

Enfermo conduz a cruz durante a Via Sacra no Coliseu

Se a Via Sacra é presidida por um sacerdote ou diácono, este pode revestir a batina com sobrepeliz ou a túnica, sobre a qual usará a estola vermelha, cor dos ofícios da Paixão (cf. Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, n. 346). Nada impede, porém, que essa devoção seja conduzida por um fiel leigo.

A Via Sacra começa com o sinal da cruz e uma saudação de quem preside, geralmente seguida de uma monição introdutória e/ou de uma oração inicial.

Segue-se o recorrido das 14 estações: quem preside anuncia a estação e em seguida propõe um versículo ou aclamação. Em alguns lugares há o costume de todos se ajoelharem durante essa aclamação, permanecendo em pé durante o restante da celebração. O versículo geralmente é este:

Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.

Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi,
R. Quia per Sanctam Crucem tuam redemisti mundum.


Um leitor proclama então um breve texto bíblico relacionado à estação. Não há um texto fixo para cada estação: podem tomar-se textos adequados dos Evangelhos da Paixão, dos Salmos, dos “cânticos do Servo Sofredor” de Isaías, das Lamentações de Jeremias... Esta proclamação da Palavra de Deus deve considerar-se sempre como o elemento mais importante dessa e de qualquer devoção cristã.

As 14 Estações "tradicionais" da Via Sacra

Após a leitura bíblica, o leitor (ou leitores) pode ler uma breve meditação, que convém ser adaptada ao contexto dos participantes (por exemplo: uma Via Sacra com crianças, com jovens, com enfermos...), mas sempre à luz da Palavra de Deus.

Quem preside recita então uma oração e todos rezam o “Pai nosso”. Pode-se acrescentar também uma “Ave Maria” e um “Glória ao Pai...”.

Enquanto se caminha até a próxima estação entoa-se uma antífona ou refrão. Em vários lugares do mundo essa antífona consiste em um verso da sequência de Nossa Senhora das Dores, Stabat Mater dolorosa.

No Brasil, porém, se popularizou um conjunto de antífonas para as 14 estações “tradicionais” da Via Sacra, com pequenas variações em algumas estrofes, unidas a um refrão. Por exemplo:
A morrer crucificado / Teu Jesus é condenado / Por teus crimes, pecador.
R: Pela Virgem dolorosa, / vossa Mãe tão piedosa, / perdoai-me, bom Jesus.


No início e no final da Via Sacra cabem também outros cantos em honra da cruz (Bendita e louvada seja; Vitória, tu reinarás...) e/ou em honra do mistério da Paixão (Prova de amor maior não háEu vim para que todos tenham vida...).

Em suma, a Via Sacra é uma prática de piedade na qual “palavra, silêncio, canto, caminhar processional e parada reflexiva se alternam de modo equilibrado, contribuindo para a obtenção de muitos frutos espirituais” (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 135).


5. Alguns elementos da espiritualidade da Via Sacra

“A Via Sacra é uma via traçada pelo Espírito Santo, fogo divino que ardia no peito de Cristo (cf. Lc 12,49-50) e o impeliu rumo ao Calvário; e é uma via amada pela Igreja, que conservou a memória viva das palavras e dos acontecimentos dos últimos dias do seu Esposo e Senhor” (ibid., n. 133).

Além da centralidade da Palavra de Deus, que citamos acima (cf. nn. 87-89) o Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia destaca outras expressões da espiritualidade cristã presentes na devoção da Via Sacra:

- o gesto do caminhar (procissão, peregrinação), que nos recorda que esta vida é caminho rumo ao encontro com Cristo (cf. nn. 245-247 do o Diretório sobre o sentido da procissão e os nn. 279-287 sobre a peregrinação);

- o mistério da cruz, passagem do exílio terrestre à pátria celeste (cf. nn. 127-129);

- o propósito de conformar-se à Paixão de Cristo (Fl 2,5: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”), unindo nossas cruzes do dia-a-dia à Cruz de Cristo [4];

- a recordação dos santos homens e mulheres que acompanharam Jesus em sua Paixão: a Mãe das dores, o discípulo amado, o ladrão penitente...

Jesus encontra-se com sua Mãe
(Capela da IV Estação - Via Dolorosa, Jerusalém)

Nas palavras do Papa Bento XVI na primeira Sexta-feira Santa do seu pontificado, “a Via Crucis não é uma coleção das coisas obscuras e tristes do mundo. Também não é um moralismo que se revela ineficiente. Não é um grito de protesto que nada muda. A Via Crucis é o caminho da misericórdia... e o caminho da salvação” [5].

Celebrando a Via Sacra, imploramos a misericórdia de Deus (cf. Hb 4,16) e, ao mesmo tempo, aprendemos a ser misericordiosos como Ele (cf. Lc 6,36). Portanto, “enquanto damos graças ao Senhor, que morreu por nós na cruz, roguemos-Lhe para que nós também saibamos morrer para o pecado e caminhar numa vida nova” (Bênção das estações da Via Sacra, Monição introdutória):

“Ó Deus, o vosso Filho foi entregue por nós e ressuscitou para que nós, morrendo para o pecado, vivêssemos para a justiça; vinde, pela graça da vossa bênção, conceder aos fiéis que celebram o piedoso exercício da vossa Paixão, carregando sua cruz com paciência, possam alegrar-se, um dia, com a revelação da vossa glória. Por Cristo, nosso Senhor. Amém”
(Bênção das estações da Via Sacra, Oração, 1ª opção).

Jesus recebe a Cruz (Igreja da Condenação - Jerusalém)

Notas:

[1] Vale lembrar também a peregrinação às sete igrejas em Roma, popularizada por São Filipe Néri (†1595) a partir do Jubileu de 1575.

[2] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, pp. 401-407.

[3] cf. PONTIFICAL ROMANO, Ritual da dedicação de igreja e de altar. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2000, pp. 430-461.

[4] cf. a Carta Apostólica Salvifici doloris sobre o sentido do sofrimento humano, promulgada por São João Paulo II em 1984.

[5] BENTO XVI. Discurso no final da Via Sacra no Coliseu, 14 de abril de 2006. Disponível no site da Santa Sé.

Referências:

ALSTON, George Cyprian. Way of the Cross. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 15, 1912. Disponível em: New Advent.

MARINI, Piero. La Via Crucis: Presentazione. Disponível no site da Santa Sé.

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 117-120.

Postagem publicada em 28 de março de 2012. Revista e ampliada em 09 de novembro de 2021.

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