sábado, 31 de março de 2012

A história do Domingo de Ramos

“A Semana Santa tem início no Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, que une em um todo o triunfo real de Cristo e o anúncio da Paixão” (Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, n. 28).

Como seu próprio nome indica, o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor (Dominica in Palmis de Passione Domini), celebração que abre a Semana Santa, é fruto de duas tradições:

- a tradição oriental, que celebra neste dia a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, episódio narrado nos quatro Evangelhos (Mt 21,1-11; Mc 11,1-10; Lc 19,28-40; Jo 12,12-16), à luz da profecia de Zc 9,9-10 (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 559-560);

- e a tradição ocidental, que enfatiza o memorial da Paixão do Senhor.

A entrada messiânica de Cristo em Jerusalém (Hippolyte Flandrin)

“Glória, louvor e honra a ti, Cristo Rei”: O Domingo de Ramos no Oriente

O testemunho mais antigo da celebração do Domingo de Ramos é, naturalmente, de Jerusalém. A peregrina Etéria (ou Egéria), que visitou a Terra Santa no final do século IV, descreve-nos as celebrações desse dia em seu “diário de viagem” (Itinerarium ad loca sancta):

No “domingo que dá entrada à semana pascal” os fiéis reúnem-se à tarde no Monte das Oliveiras, onde “dizem-se hinos e antífonas apropriadas àquele dia e ao lugar, e igualmente leituras”. À hora undécima (17h) proclama-se o Evangelho da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, provavelmente segundo Mateus, considerado o destaque que Etéria dá às crianças no relato (cf. Mt 21,15-16).

Após o Evangelho, forma-se a procissão desde o alto do Monte das Oliveiras até a Anástasis (Basílica do Santo Sepulcro), ao canto de hinos e antífonas. Todos levam ramos de oliveira ou de palmeira nas mãos.

Chegando à Basílica da Ressurreição, celebra-se a oração da tarde (lucernário), recita-se uma oração junto à Cruz (isto é, junto ao Calvário), e o Bispo abençoa os fiéis [1].

Procissão de ramos em Jerusalém (um fiel agita um ramo de oliveira)

De uma comemoração local da Igreja de Jerusalém, o Domingo de Ramos logo se difundiu entre as demais Igrejas Orientais.

O Ocidente, por sua vez, teve contato com esta celebração através da Espanha e da Gália no início do século VII. A partir de Santo Isidoro de Sevilha (†636) o domingo antes da Páscoa é chamado Dominica Palmarum ou Dominica in Palmis (Domingo de Ramos), ou, mais raramente, Dominica Hosanna [2].

Apesar do nome, as Igrejas ocidentais relacionavam o domingo antes da Páscoa com a dupla característica da Quaresma, batismal e penitencial:

- ligado ao Batismo, esse domingo também era chamado Capitulavium (literalmente “da ablução da cabeça”), sobretudo na Espanha e na Gália, uma vez que os catecúmenos cortavam o cabelo, lavavam a cabeça e eram ungidos com o Óleo dos Catecúmenos em vista à recepção do Batismo.

Esse rito da ablução da cabeça era iluminado pela perícope evangélica da “unção de Betânia” (Jo 12,1-11) [3], Evangelho que no Rito Romano é proclamado na Segunda-feira da Semana Santa.

Também nesse domingo em alguns lugares tinha lugar a Traditio Symboli, a entrega do Símbolo da fé (isto é, do Creio) aos catecúmenos [4].

Abside da igreja de Betfagé, junto a Betânia

- ligado ao itinerário da penitência quaresmal, o VI Domingo da Quaresma era chamado Dominica Indulgentia (Domingo da Indulgência ou do Perdão), aludindo ao rito da reconciliação dos penitentes que teria lugar na manhã da Quinta-feira Santa.

No Ocidente a procissão de ramos só se popularizaria no século VIII, como atesta, por exemplo, o Missal de Bobbio. No final desse século, Teodulfo de Orleans (†821) compôs o célebre hino em honra de Cristo Rei, “Gloria, laus et honor” (Glória, louvor e honra a ti), que até hoje consta no Missal Romano para a procissão de ramos.


Em Roma, a procissão chega mais tarde, a partir do Pontifical Romano-Germânico (séc. X), o qual contém várias fórmulas para a bênção dos ramos. Essa bênção era particularmente solene, com uma Liturgia da Palavra [5], um “prefácio” e uma longa série de orações, que recordavam diversos “temas”, como, por exemplo, o simbolismo do ramo de oliveira no episódio do dilúvio (Gn 8,11). Esse rito seria simplificado na reforma da Semana Santa de 1955, promovida pelo Papa Pio XII (†1958).

Durante a Idade Média a procissão de ramos ganhou grande popularidade e conheceu diferentes níveis de dramatismo. Os fiéis comumente reuniam-se fora da cidade, preferencialmente em uma colina, emulando o Monte das Oliveiras, de onde partia a procissão, guiada pela cruz ornada com ramos.

Nesta procissão dava-se grande destaque ao Livro dos Evangelhos (Evangeliário), conduzido por quatro diáconos em um portatorium (andor) envolto em um véu púrpura [6]. Durante a procissão se entoavam várias antífonas e as crianças ofereciam flores ao longo do caminho.

Quando a procissão chegava às portas da cidade, havia uma “estação” para a adoração da cruz. Todos se prostravam e em seguida aproximavam-se em pequenos grupos para venerar a cruz, depositando flores, enquanto entoavam-se antífonas e hinos (dentre os quais o já citado Gloria, laus et honor).

Adoração da cruz no Monte das Oliveiras em Jerusalém
(Domingo de Ramos 2021)

Concluída a adoração da cruz, todos entravam na cidade e dirigiam-se à catedral ou igreja principal, onde o Bispo ou sacerdote celebrava a Missa.

A ênfase no tema das flores deve-se a que, sobretudo no norte da Europa, onde é mais difícil encontrar palmeiras ou oliveiras, os fiéis ofereciam ramos de outras árvores, muitas com os primeiros brotos de flores da primavera. Por isso o Domingo de Ramos passou a ser conhecido também como Pascha floridum (Páscoa florida) ou dies florum (dia das flores).

Na Inglaterra, ao invés do Evangeliário, era costume conduzir na procissão o Santíssimo Sacramento, prática que posteriormente cairia em desuso em benefício da procissão eucarística de Corpus Christi.

Na Alemanha, por sua vez, conduzia-se em procissão o palmesel ou “asno da palma”, uma imagem de madeira de Jesus sobre o asno. Algo similar ocorre até hoje na Espanha, onde as diversas procissões da Semana Santa são enriquecidas com artísticas imagens dos mistérios celebrados, conduzidas pelos fiéis em grandes andores.

Palmesel do início do século XVI (Museu do Louvre)

Atualmente recomenda-se evitar esses elementos “teatrais” na procissão: “não se trata de uma representação de caráter historicizante da entrada de Jesus em Jerusalém, uma espécie de encenação de mistérios, mas da proclamação pública do nosso seguimento de Cristo na fé e na caridade” [7].

O Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia (n. 144) recorda que enquanto a “encenação” é apenas “mimese” (memória), a Liturgia é “anamnese” (memorial), isto é, atualização, presença mistérica da história da salvação celebrada “hoje”. Nesse sentido, Santo André de Creta (†740) nos exorta a agitar hoje diante de Cristo “nossos ramos espirituais” [8].

Outro gesto característico da procissão de ramos que se originou provavelmente no século XII e foi introduzido no Missal Romanum pelo Papa Clemente VIII (†1605) é a solene abertura das portas da igreja.

Ao chegar ao templo, a procissão parava diante das portas fechadas, golpeadas então com a haste da cruz processional. Tal gesto, provavelmente uma dramatização dos Salmos 23 (24) e 117 (118), expressava que através do Mistério Pascal da Morte-Ressurreição de Cristo foram abertas para nós as portas da salvação (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 5). Um rito semelhante de “abertura das portas” é realizado no Rito Bizantino no Domingo de Páscoa.

Cruz ornada com ramos (Praça de São Pedro)

Ainda em relação à Idade Média, por fim, cabe recordar as interpretações equivocadas do simbolismo dos ramos, aos quais eram atribuídos poderes “mágicos”, como resquício do costume pagão de queimar certas plantas para afastar o mal.

O Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia recorda, em seu n. 139, que os ramos “não devem ser guardados como amuletos ou somente para fins terapêuticos ou apotropaicos, isto é, a fim de manter distantes os espíritos maus e afastar das casas e dos campos os prejuízos causados por eles, o que poderia ser uma forma de superstição. Tais ramos devem ser conservados antes de tudo como testemunho da fé em Cristo, rei messiânico, e na sua vitória pascal” [9].

A tua entrada ao Calvário conduzia”: O Domingo da Paixão no Ocidente

Apesar de ter incorporado o costume oriental da procissão de ramos, a igreja de Roma nunca abandonou suas tradições. Com efeito, desde os séculos IV-V o domingo antes da Páscoa era chamado em Roma de Dominica de Passione Domini (Domingo da Paixão do Senhor), como testemunham diversos sermões dos Padres latinos (como Santo Agostinho ou São Leão Magno).

Procissão de ramos em Elche (ou Elx), Espanha

No Rito Romano, com efeito, esse domingo sempre foi caracterizado pela proclamação da narrativa da Paixão do Senhor segundo Mateus (os demais relatos eram lidos ao longo da Semana Santa: Marcos na terça, Lucas na quarta e João na Sexta-feira). O Evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém, por sua vez, curiosamente era lido no I Domingo do Advento, interpretado em chave escatológica [10].

A partir do século V surge o costume de empregar três tonalidades distintas para a narrativa da Paixão: o diácono usava um tom para a narração, outro para as falas de Cristo e outro para as falas dos demais personagens.

Assim, a partir do século XI, a fim de facilitar o canto e dar mais dramatismo ao relato, a Paixão passou a ser entoada por três diáconos: um entoava as falas de Cristo, outro as os demais personagens e um terceiro servia como cronista ou narrador, além do coro que entoava as parte do povo (turba). Tal costume convém ser conservado, como indica a Carta Circular Paschalis Sollemnitatis (n. 33).

O gesto de ajoelhar-se ao anúncio da Morte do Senhor, por fim, remonta aos séculos XIII-XIV.

Diáconos com os livros da Paixão do Senhor
(Basílica do Santo Sepulcro, Domingo de Ramos 2021)

A atual celebração do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor

A partir do século VII, as últimas duas semanas antes da Páscoa passaram a integrar o “Tempo da Paixão”: assim, o V Domingo da Quaresma tornou-se o I Domingo da Paixão e o Domingo de Ramos o II Domingo da Paixão.

Além disso, para o Domingo de Ramos previam-se paramentos roxos, os mesmos usados durante toda a Quaresma. Com a reforma da Semana Santa realizada pelo Papa Pio XII em 1955, passou-se a prescrever paramentos vermelhos para a bênção dos ramos e a procissão e roxos para a Missa.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II simplificou esses ritos, suprimindo o Tempo da Paixão e prescrevendo paramentos vermelhos (cor dos ofícios da Paixão) para toda a celebração do Domingo de Ramos.

Para a bênção dos ramos, além de uma monição introdutória, são propostas duas opções de oração à escolha (Missal Romano, pp. 220-221). Quanto às orações da Missa (pp. 230-231), foi conservada a coleta do anterior Missal, enquanto as orações sobre as oferendas e após a Comunhão, que até então eram “genéricas”, deram lugar a textos relacionados ao mistério a Paixão.

Destaca-se também o novo Prefácio próprio, “A Paixão do Senhor” (até então se utilizava o Prefácio da Santa Cruz), no qual o Mistério Pascal é expresso em sua totalidade: “Inocente, Jesus quis sofrer pelos pecadores. Santíssimo, quis ser condenado a morte pelos criminosos. Sua Morte apagou nossos pecados e sua Ressurreição nos trouxe vida nova” (Missal, p. 221).

Entrada de Jesus em Jerusalém
(Giotto - Capela Scrovegni, Pádua)

Cumpre recordar, por fim, o maior contato com a Palavra de Deus na Liturgia renovada:
- o Evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém e a narrativa da Paixão (esta com uma “forma longa” e uma “forma breve”) seguem o ciclo trienal (anos A-B-C);
- à epístola que se proclamava anteriormente (Fl 2,6-11, com a infeliz omissão do v. 5) e ao Sl 21 foi acrescentada a leitura de Is 50,4-7, o terceiro dos quatro “cânticos do Servo Sofredor”, lidos ao longo da Semana Santa.

Notas:

[1] ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta), nn. 30-31; in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, pp. 453-454.

[2] O termo hebraico “hosana” era originalmente era uma súplica: “salva-nos” (cf. Sl 117/118,25). A partir do seu uso em Mt 21,9 tornou-se uma aclamação: “Hosana ao Filho de Davi!”.

[3] Até hoje no Rito Hispano-Mozárabe (próprio da Espanha) o Evangelho do Domingo de Ramos compreende tanto a unção de Betânia quanto a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém (Jo 11,55–12,13).
No Rito Ambrosiano (próprio da Arquidiocese de Milão - Itália), por sua vez, há um duplo esquema de leituras: quando há a bênção dos ramos (Zc 9,9-10; Sl 47; Cl 1,15-20; Jo 12,12-16) e quando não há a bênção (Is 52,13–53,12; Sl 87; Hb 12,1b-3; Jo 11,55–12,13).

Entrada messiânica de Jesus em Jerusalém
(Mosaico da Capela Palatina, Palermo)

[4] Em Roma, por sua vez, a Traditio Symboli tinha lugar tradicionalmente na quarta-feira da IV semana da Quaresma, durante uma sugestiva celebração na Basílica de São Paulo fora-dos-muros.
Atualmente, esse rito é celebrado durante o próprio itinerário catequético ou durante a III semana da Quaresma, após o I Escrutínio (cf. RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, pp. 48-56).
No Rito Ambrosiano, em contrapartida, a entrega do Símbolo conserva-se no sábado antes do Domingo de Ramos.

[5] Ex 15,27–16,7 (com a referência às “70 palmeiras” no v. 27 e a murmuração do povo contra Deus no deserto, “tema” tipicamente quaresmal); Jo 11,47-50.53 ou Mt 28,39.41 (à guisa de “salmo”, os quais estão um pouco “fora de contexto” aqui, antecipando o “tema” da Paixão); Mt 21,1-9.

[6] A cor púrpura ou roxa remete aqui primeiramente à realeza de Cristo: uma vez que era um pigmento difícil de conseguir, na Antiguidade era reservada aos reis e nobres. Ao mesmo tempo, remete à união hipostática, isto é, a Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Com efeito, a cor púrpura ou roxa é composta pela mescla do azul, que remete ao céu (divindade), e do vermelho, que recorda o sangue (humanidade).

[7] ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 81.

[8] II leitura do Ofício das Leituras do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor (OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 366-367).

[9] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 123.

[10] Tal costume é conservado no Rito Ambrosiano (Milão), no qual se lê o Evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém no IV Domingo do Advento (vale lembrar, porém, que nesse rito o Advento possui seis domingos, e não quatro como no Rito Romano).

Ícone da entrada de Jesus em Jerusalém

Confira também:
Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 79-83.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 292-299.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018. Coleção: Documentos da Igreja, n. 38.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 777-785.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. III: Il Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 178-189.

Postagem publicada originalmente em 31 de março de 2012. Revista e ampliada em 03 de março de 2022.

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